Parecer da Dra. Amélia Campos

É no encontro da Matemática com o Português
que precisamos de encontrar a solução para os nossos sentidos e sensações

Têm vindo recentemente a público posições diversas sobre a Prova Escrita de Português do 12º ano, 639/1ª fase, do exame nacional. Acerca deste assunto, já se manifestaram especialistas de várias áreas, bem como representantes de associações e até o director do Gabinete de Avaliação Educacional, Hélder de Sousa. Cada um apresentou as suas explicações para a acentuada descida do resultado médio obtido nesta prova. Foi ainda posta a circular na Internet uma Petição Pública «Pela Revisão das Classificações da Prova Escrita de Português dos Exames Nacionais do Ensino Secundário 2011» http://www.peticaopublica.com/?pi=P2011N12620
É do conhecimento público que a nota média global obtida é de 8,9, e que foram já apontadas razões diversas para este resultado.
Para o director do Gave. Hélder de Sousa, em quem o ministério delegou as necessárias explicações, os textos do grupo que é alvo da petição "foram escolhidos a partir da lista de autores estudados no 12.º ano", tendo confirmado que a "análise dos resultados de cada uma das respostas" mostra que a descida da média "se centra no fraco desempenho evidenciado pelos alunos na resposta às questões que avaliam o conhecimento das regras básicas do funcionamento da língua, como, por exemplo, a identificação do sujeito de uma oração". Duas perguntas de gramática terão contribuído para metade dos 14 pontos de quebra na média dos alunos internos.”.
Para a Associação de Professores de Português (APP), na voz do seu presidente Paulo Feytor Pinto, em declarações à agência Lusa, “a prova, na qual estavam inscritos cerca de 67 mil alunos, acabou por ser pobre a nível das competências avaliadas, incidindo demasiado na interpretação de texto e negligenciando outro tipo de conhecimentos, em particular, os conhecimentos de Gramática. (…) "O exame acaba por não avaliar a maior parte dos objetivos do programa. Ficam de fora conhecimentos tão importantes como a oralidade e a Gramática, o que é um aspeto muito negativo",

Para a Prof. Teresa Rita Lopes, especialista na obra de Fernando Pessoa e editora de “Álvaro de Campos, Poesia” (donde foi retirado o poema utilizado na primeira parte da referida prova), o texto foi mal escolhido e as perguntas formuladas de forma incorrecta, revelando por parte dos autores da prova uma deficiente compreensão do texto. Além do mais “algumas dessas perguntas admitem múltiplas respostas, não estando essa multiplicidade prevista nos “cenários de resposta” pelos quais se guiaram os correctores da prova “.
Concluiu aquela especialista (de quem me orgulho de ser discípula), que “os alunos que responderam neste exame foram GRAVEMENTE PREJUDICADOS por erros que não são da sua responsabilidade. Além disso, as baixas classificações obtidas neste exame vão ter consequências graves no futuro destes estudantes, já que a nota do exame nacional de português tem um grande peso na classificação para o acesso ao ensino superior”.
E acrescentou que
"a escolha do poema [Na Casa Defronte] foi infeliz", uma vez que "o seu bom entendimento implicaria um conhecimento aprofundado da poesia de Campos que não pode ser exigido a alunos deste nível".

Porque já não estou no activo, mas ainda não consegui desactivar a consciência, procurei, dentro de mim, “as discussões e divergências de critérios”, desde a gramática (des) generativa ao mais rendilhado dos arvoredos – já não levei com a maldição da TLEBS –  até à onda alterosa do facilitismo, tentando encontrar uma explicação para este estado de coisas. Porque não fui eu a criadora desta aberração, não decreto a minha própria infalibilidade – eu também sou poeta - nem espero que tomem esta minha “crítica como um acto de lesa divindade”.
Posto isto, começo por dizer que também me pareceu muito infeliz a escolha do poema “Na casa diante de mim e dos meus sonhos, /Que felicidade há sempre! “, de Álvaro de Campos, para uma Prova Escrita de Português do Ensino Secundário, a nível nacional. A equipa examinadora deixou escapar que se encontra, também ela, em fase abúlica, ao escolher um poema onde são visíveis, o abatimento e o desencanto. Digo isto não por entender que os jovens devam ser poupados a qualquer dificuldade de compreensão ou análise, antes pelo contrário, mas porque um outro poema de Campos - heterónimo de educação inglesa e origem portuguesa, com a sua sensação de ser estrangeiro -, teria sido mais eficaz num contexto em que nos tratam como lixo, e em que cada dia que passa todos nós vamos tendo a sensação de perdermos soberania e de nos interrogarmos quanto ao nosso futuro.
Porque também estou farta “de semideuses!” e porque as fases poéticas distintas de Álvaro de Campos – talvez o único heterónimo de Pessoa a manifestar-se deste modo -, colocam à nossa disposição poemas mais sugestivos,  eu talvez tivesse sugerido o “Poema em linha recta”. Mas como a escolha foi outra, vamos ao que importa.
É inaceitável que logo na primeira pergunta se comece por confundir sensações com sentidos. Esta abordagem enviesa, desde o princípio, o teor das respostas, induzindo em erro os examinandos. Segundo os critérios de correcção expressos, que atribuem 9 pontos à identificação adequada das duas sensações, citando para ambas elementos do texto, não sei como pôde este erro passar por tantos filtros. Ou se marcou errado o que estava certo e há que somar, ou se marcou certo o que estava errado e há que subtrair. Aqui não há desculpa, trata-se de Matemática pura, E é neste encontro da Matemática com o Português que precisamos de encontrar a solução para o problema dos nossos sentidos e das nossas sensações. Sentir que está certo o que vimos de errado, ficar alegres, quando deveríamos ficar tristes, só pode contribuir para o descrédito de uma das mais nobres funções, a de ensinar.
Também a segunda pergunta não é feliz. Remeter o examinando para a caracterização do ”tempo da infância, tal como é apresentado na terceira estrofe do poema”, é limitar as possibilidades de exploração textual à despreocupação e à não consciência da passagem do tempo. Uma vez que o tema da infância surge, novamente, na sétima estrofe, uma exploração textual aprofundada poderia captar uma compreensão mais alargada do poema, nomeadamente a da nostalgia de uma infância irremediavelmente perdida, mais consentâneo com os 15 pontos atribuídos à resposta.
Muito haveria ainda a apontar a esta prova e ao ensino do Português. Recordo-me dum encontro em que Saramago defendia o acesso à “arca do tesouro” que é a Literatura, e do modo como ele referiu o fascínio deixado por livros mesmo a preto e branco, livros que foram também meus, que não davam tudo, mas nos permitiam sonhar, inventar caminhos, cores, formas e mundos, onde as sinestesias pudessem ter lugar, sem pretenderem manipular os nossos sentidos.
Maria Amélia Campos
Escritora e poeta